quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

ACADÉMICAMENTE: ANALISES E CONSIDERAÇÕES
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"Guiné Bissau

ACLARAÇÃO OU ADENSAÇÃO?

Ontem, foi Dia dos Heróis Nacionais na Guiné Bissau e em Cabo Verde, o dia de recordar o assassinato de Amílcar Cabral, ocorrido em 20 de Janeiro de 1973 em Conacri. Cremos que Cabo-Verde fez o acerto com a história, desmontou tabus e emancipou-se. Quanto a nós, deste lado, 47 anos depois, ficamo-nos pelos ideais proclamados em Madina de Boé. Reféns da história, com a dignidade patriota de rastos, num Estado em agonia e num país perdido no mapa, os nossos poucos historiadores já mal nos ajudam a festejar os nossos Heróis e a relembrar os feitos de Cabral.

Neste hoje que nos é reservado, mantêm-nos entregues à luta pelo poder na Guiné-Bissau e a uma democratização difícil (vide Álvaro Nóbrega, 2003 e 2015) que, na atualidade política, toma a forma de ACLARAÇÃO DE ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA (STJ).

Apesar de estarmos bastante elucidados com imensas e algumas excelentes intervenções sobre o assunto, permitam que também corrobore e reforce abordagens que, do meu ponto de vista, sem desprimor, são as mais bem sustentadas e patrióticas, fazendo-o exclusivamente em exercício de cidadania e numa perspetiva técnico-jurídica, necessariamente, política.

Relembro que no Recurso Contencioso Eleitoral interposto junto ao STJ pelo Candidato derrotado no pleito eleitoral teve como FUNDAMENTO “falta de apresentação de resultados eleitorais, na sua versão regional e nacional, pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) ”. Para pedir ao Tribunal que ordenasse a “recontagem total dos votos” e a “declaração da violação do princípio da verdade material (art.º 2.º, a) e c), 3.º e 5.º do Código do Processo de Contencioso Administrativo”.

Por imperativo legal, o recurso ao STJ em contencioso eleitoral é obrigatoriamente baseado em decisões proferidas pela CNE sobre reclamações protestos e contraprotestos. Assim define, taxativamente, o art.º 142.º da Lei Eleitoral (LE) o OBJETO DO RECURSO, quer para as eleições legislativas como para as presidenciais. Esta disposição imperativa/peremptória do sistema eleitoral foi enunciada pela CNE em contra-alegações, bem como outras regras processuais relativas ao recurso contencioso eleitoral, esclarecendo que não recebera nenhuma reclamação ou protesto no decurso dos actos eleitorais, pelo facto acautelando o douto Tribunal sobre a improcedência do Recurso por violação da norma que condiciona a tutela jurisdicional a um objeto específico e especial. No entanto, o STJ, podendo e querendo, nos termos da celeridade que caracteriza o processo e em observância aos ditames legais, exigir às partes a apresentação de quaisquer documentos, não o fez e, mesmo assim decidiu em Acórdão 1/2020, designadamente o seguinte: «Na desinência do que ficou exposto, acordam os juízes Conselheiros, em face da inobservância da prescrição legal imperativa, pelo não conhecimento do mérito da causa e, consequentemente, determinar o cumprimento da formalidade preterida” (pág. 8, in fine)». Ao que um dos Juízes Conselheiros, em declaração de voto vencido, mas já em ação de Aclaração de Acórdão interposta pelo Candidato derrotado no pleito eleitoral, considera que a expressão “do que ficou exposto” reporta-se à parte da fundamentação relativa ao motivo da falta de objeto de recurso, suporte da decisão proferida. No Acórdão também se interpela agora a CNE para observar as exigências constantes no art.º 95.º da LE, como seja o envio de um exemplar da Acta do apuramento nacional aos órgãos de soberania, aos partidos políticos ou coligações de partidos concorrentes. O que se fez, em conformidade com a lei.

Efetivamente foi requerida a Aclaração do Acórdão 1/2020. Feita ao abrigo do art.º 669.º e 716.º/2 do Código Processo Civil (CPC), indicando-se apenas o seguinte: «nomeadamente, na parte relativa ao cumprimento da formalidade preterida que constituiu na inobservância de prescrição legal imperativa, através de sua aprovação, assinatura e notificação às partes legalmente habilitadas em data posterior». Face à indicação das normas adjetivas gerais de direito civil em contencioso eleitoral, sobrevém o princípio jurídico segundo o qual "LEX SPECIALIS DEROGAT LEGI GENERALI” que quer dizer que lei especial derroga leis genéricas, ou seja a Lei n.º 10/2013, de 25 de Setembro, é A LEI QUE REGULA AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS E LEGISLATIVAS; e, quaisquer dúvidas e omissões suscitadas pela sua aplicação são resolvidas por deliberação da Comissão Permanente da Assembleia Nacional Popular (art.º 186.º da LE). Ademais, é nesta especialidade e sentido que qualquer Acórdão proferido pelo STJ em matéria eleitoral, instância judicial competente, é considerado uma DECISÃO DEFINITIVA, ou seja o STJ decide definitivamente (art.º 147.º da LE). Admitir o contrário em matéria de contencioso eleitoral, que é de INTERESSE PÚBLICO, é contra a garantia da segurança e certeza jurídicas, conforme o atesta outro dos Juízes Conselheiros, em voto vencido.

Mas, imaginemos que fossem aplicáveis as disposições legais invocadas no pedido de Aclaração. O art.º 669.º sobre esclarecimento ou reforma da sentença estabelece que qualquer das partes pode requerer no tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma OBSCURIDADE OU AMBIGUIDADE que contenha. Ou seja, efetivamente, no nosso ordenamento jurídico, uma vez proferida a sentença e assim esgotado o seu poder jurisdicional, pode o juiz esclarecer dúvidas existentes na sentença, em face de uma eventual obscuridade ou ambiguidade. Contudo, em concreto, o Requerente não indicou e nem fundamentou em que consistiriam essa obscuridade ou ambiguidade no Acórdão n.º 1/2020, como aliás também o conclui outro dos três Juízes Conselheiros vencidos em voto: “o STJ decidiu, nos termos que o fez, de modo claro, contundente e inequívoco, cingindo-se tão só pelo cumprimento do disposto no art.º 95.º da LE, em conformidade com prescrição legal imperativa”.

Não obstante a falta de fundamentação do que consistiria obscuridade ou ambiguidade no Acórdão, no enquadramento legal sugerido, em Aclaração, o STJ retira da ordem jurídica, mirabolantemente o princípio da ininterruptibilidade das operações de apuramento nacional, para supostamente «garantir a liberdade e sinceridade da formação da vontade eleitoral, procedendo-se ab inicio as operações do apuramento nacional, com a imediata elaboração da ata onde constam os resultados apurados, as reclamações, os protestos e os contraprotestos apresentados e as decisões que sobre eles tenham sido tomadas».

A lei não o permite recuar o esclarecimento da obscuridade ou ambiguidade aos FUNDAMENTOS DA PRÓPRIA DECISÃO, através da Aclaração do Acórdão. Como igualmente, não permite que o Requerente, não concordando com a decisão, pretenda, através do expediente jurídico da Aclaração do Acórdão, uma NOVA APRECIAÇÃO, uma vez que tal situação não se enquadra nem na letra nem no espírito do supra mencionado art.º 669.º do CPP, constituindo-se apenas num comportamento processual abusivo por parte do Requerente. Posto que a função da Aclaração é iluminar algum ponto obscuro da decisão e através dela corrigir-se apenas a sua forma de expressão e não modificar o seu alcance ou conteúdo. A finalidade da Aclaração não é fixar jurisprudência, pelo contrário, é um mecanismo que visa esclarecer algum ponto de uma decisão que se mostre obscura ou ambígua; isto é, confusa ou de difícil interpretação, suscetível de interpretações diferentes. Não restam dúvidas que o pedido deveria ter sido indeferido por absoluta desnecessidade. De resto, o Requerente não fundamenta o que não entendeu claramente no Acórdão e os parcos fundamentos do pedido entram em contradição com o espírito do legislador quanto aos fins previstos para o art.º 669.º invocado. Tanto que um dos Juízes Conselheiro defende em voto vencido: “… um pedido de Aclaração que não trouxe nada de novo, que não demonstrou haver ininteligibilidade da decisão, nem mostrou a contradição entre as expressões que constituem o conteúdo da decisão”. Resumindo: em lugar de Aclaração de Acórdão pretendeu-se obter, por via oblíqua, a modificação do decidido, não sendo este o mecanismo legal para o efeito. O desvirtuar do objeto de recurso contencioso eleitoral e do fim legal da aclaração de sentença, parecer ter tratamento privilegiado e ser compensado.

Naturalmente que deste escurecimento da Aclaração surge a ilusão de uma suposta vitória, pelo menos para alguns, sobretudo baseada numa única frase em latim (aliás mal escrito: lê-se ab inicio, mas escreve-se ab initio), para se epilogar que a Aclaração dera a satisfação ao pedido feito em Recurso para que o STJ ordenasse a “recontagem total dos votos”. Uma vitória de Pirro, por assim dizer. O AB INITIO só pode aplicar-se, óbvia e exclusivamente, às competências da CNE, as quais se limitam a coligir os dados das 10 Comissões Regionais. A CNE terá apenas, e em último caso, de repetir a sua recolha, confirmar os totais por círculo, e apresentar a simples soma que daí resulta, os totais nacionais, com datação posterior a 17. Ou nem sequer isso, visto ter apresentado Acta em conformidade e ter terminado esse trabalho. Que nos ajudem a desvendar onde, no nosso sistema eleitoral, existe a recontagem dos votos. Quiçá, aí poderemos ignorar e desprestigiar o trabalho de apuramento geral dos presidentes das mesas de assembleia de voto e a fiscalização dos delegados do Ministério Público e dos candidatos no processo de votação (83.º c) da LE); e passar por cima dos observadores internacionais, que consideraram as eleições justas, livres e transparentes.

É evidente que concluo, em apego aos Juízes que no STJ se declaram vencidos em voto: “O STJ dá o dito pelo não dito, manda cumprir formalidade preterida, esta é cumprida, e discorda dela na Aclaração. Porque é posterior, quando o já sabia quando a solicitou; e a Acta confirma que efetivamente, nos termos da lei, não houvera durante o processo de votação e até ao fecho das urnas quaisquer reclamações, protestos ou contraprotestos; e, portanto, um novo apuramento nacional não se justifica”. Como ainda: “… conseguiu-se convencer a posição maioritária de Juízes Conselheiros a voltar a reexaminar a ratio decidida. A Aclaração acaba por transformar a decisão suprema numa solução injuntiva de se colocar o órgão de gestão eleitoral contra os princípios mais informadores do processo eleitoral (o princípio do aproveitamento do voto e de todo o processo a ele inerente), ou seja obrigar a CNE a recuar para a retaguarda com actos já consolidados”. Finalmente: “A indicação do cumprimento do art.º 95.º, cingiu-se, apenas e em termos lógicos, a determinar o cumprimento dessa formalidade, não carecendo de Aclaração, sob pena do Acórdão aclaratório revelar-se redundante”.

Parecendo haver "uma grande confusão" nesta decisão de Aclaração. Por isso, na vileza e no absurdo, se legitimamente questionássemos? Já que se sancionou um ex-PRG e outro em pleno exercício de funções, não será oportuno, em nome da VONTADE POPULAR SOBERANA obtida nas urnas e da ESTABILIDADE, sancionar os que persistem em inviabilizar estes propósitos? Afinal não terá sido a CEDEAO que auditou os ficheiros eleitorais e monitorizou com observadores a 2.ª volta das presidenciais que as considerou Justas, Livres e Transparentes?

Mas por onde andará o Ministério Público, órgão do Estado encarregado de, junto dos tribunais, fiscalizar a legalidade e representar o interesse público e social (art.º 125.° da CRGB)? Não terá direito de se pronunciar sobre a verificada adensação?

Será que se tem o alcance das consequências jurídicas a retirar deste processo judicial?

De facto, somos exímios no caos e na desordem, como o dizia ontem um representante da sociedade civil. Entre uns e outros, sobressaem entre nós os peritos requintados no bloqueio do país.

O doloroso é que, se não houver uma MUDANÇA, assim continuaremos, num Estado unilateralmente proclamado em 1973, em nome da «vontade soberana do povo», no respeito à liberdade, à dignidade; cujo objetivo fora «promover o progresso económico do país, criando, assim, as bases materiais para o desenvolvimento da cultura, da ciência e da técnica, com vista à elevação constante do nível de vida social e económico das populações e para a realização final duma vida de paz, de bem-estar e de progresso para os filhos da terra». Mas, neste hoje, como celebrar e relembrar os nossos Heróis Nacionais?
Alguns de nós estão a salvo por terem escolhido ou se terem escapado para a emigração. Conseguiram outras escolas, outros cuidados mínimos de saúde, não se lhes deve o fruto do seu trabalho, circulam em estradas, frequentam restaurantes, têm expetativas, e tudo o mais que aqui é miragem. Sabemo-los solidários connosco e alguns sedentos da concórdia e da estabilidade para vir dar a mão. Deles dependerão também no futuro os adiados festejos em memória dos nossos Heróis Nacionais.

No contexto, concluo finalmente com frases e palavras de ordem de Amílcar Cabral: «Cada um de nós é que tem que pegar teso para corrigir, porque senão, não há nada que nos possa salvar… QUEREMOS HOMENS E MULHERES CONSCIENTES, DE CABEÇA LEVANTADA… Cada dia devemos ser mais rigorosos com os nossos responsáveis e os nossos dirigentes; a cabeça tem que dar o exemplo. Chegou o momento de acabarmos com responsáveis e dirigentes que são capazes de prejudicar os outros para não os deixarem avançar, com medo que lhes tirem o lugar… MAS SOMOS NÓS TODOS QUE TEMOS DE ACABAR COM ISSO».

Bissau, 21.01.2020"

Carmelita Pires

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